terça-feira, 29 de julho de 2014

Querem namorar comigo?

Olá, tudo bem? Deixem estar, não interessa.
Podemos falar um pouco acerca da genialidade dos bilhetes de amor que mandávamos na escola primária? Quanto a vocês não sei, mas eu sempre fui um romântico. Já em miúdo, a Minnie não era, para mim, apenas a gaja do Mickey, como diziam os meus amigos mais serranos, mas sim a sua donzela. No máximo, fazia uma ou outra piada sobre a sua rata, mas nada de mais.
Em relação às donzelas reais, da minha turma, eu também era um verdadeiro mini-Don Juan. Os bilhetes que mandava nos intervalos das aulas - sim, porque durante as aulas treinava-se a arte da sedução com a borracha do lápis na boca - eram carregadinhos de sentimento, desde a acutilância das perguntas "Gostas de mim?" ou "Queres namorar comigo?" até à multiplicidade estratégica das hipóteses de resposta, tudo envolto numa caligrafia de fazer inveja ao mais criativo artista plástico.
À pergunta do admirador, a visada respondia fazendo uma pequena cruz numa das três caixas à disposição, com as hipóteses "Sim", "Não" ou "Talvez". Desta forma, não se deixava nada em aberto. Por vezes, havia também uma quarta opção, "Se os meus pais deixarem", que implicava até um contrato com terceiros. Quem diz que os miúdos não têm lugar no mundo dos altos negócios nunca mandou bilhetes de amor em pequeno, com certeza.
No fundo, responder aos meus bilhetes era um bocado como jogar uma versão alternativa do Quem Quer Ser Milionário, com várias hipóteses de escolha, apresentada por uma folha de papel e onde o prémio final era o meu coração. Sim, um trem de cozinha talvez fosse mais útil, mas não constituía um prémio com tanto sentimento.
As paixões, essas, eram duradouras, porque eu não era cá menino de andar a saltar cercas. Nem no sentido figurativo, nem literal, porque tinha medo que os vizinhos se zangassem. Quem respondia positivamente aos meus bilhetes podia contar com o meu amor incondicional até à hora do almoço do dia seguinte, pelo menos, porque entretanto instalava-se aquela rotina do casal e a fome toldava-me todos os outros pensamentos.
Já o fim da relação era penoso e angustiante, porque implicava explicar a uma pessoa que ainda estava a aprender a tonalidade das vogais que a nossa relação não agourava um futuro promissor. Normalmente, quebrava o gelo dizendo: "Tal como esta conta de dividir se conjectura difícil, também a divisão do nosso amor se adivinha custosa para ambos." Era tiro certeiro. Às vezes, até acabavam por partilhar comigo o conteúdo da sua lancheira, como oferenda de paz.
Eram outros tempos, isso é certo. Hoje em dia, já só arranco folhas dos cadernos para fazer aviões de papel e enviar para os quintais dos vizinhos que me aterrorizavam em miúdo, quando lhes tentava saltar a cerca. Enfim, vicissitudes do karma.

Abreijo.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Apreensões bucais.

Podem dizer que não à vontade, mas eu cresci. No entanto, quem disser que não, é cócó.
Sim, é verdade, cresci em muitos aspectos. Hoje em dia, não só sou capaz de chegar às prateleiras mais altas da casa como também sou capaz de discutir, sem risinhos parvos, variados temas da actualidade com outras pessoas, desde que não envolvam demasiados sentimentos. Já a tabuada, essa, continuo sem a saber de cor.
Contudo, talvez o aspecto preocupante da minha infância em relação ao qual se nota algum progresso da minha parte seja o meu medo de perder os dentes de leite. Sim, é verdade. Em miúdo, uma das coisas que mais me apavoravam era a inevitabilidade de vir a ficar sem dentes de leite. Podem chamar-me parvo à vontade, embora o acto de chamar parvo a um miúdo não abone muito a vosso favor. São piores do que as crianças, vocês!
Ora, porquê este medo precoce de um acontecimento tão banal como perder as trituradoras bucais de leite, perguntam vocês? Vá, perguntem, estou à espera... Pronto, vou responder: Porque gosto de estar sempre preparado. Sou uma pessoa que, desde cedo, se identificou com aquela ideia de um homem prevenido valer por dois, de modo que gosto de ter sempre suplência. Por isso, gostava de ter sempre um conjunto de dentes extra para reserva, pois nunca se sabe quando vão ser precisos. Sim, é verdade, não confio a mim próprio nem os meus dentes! Eu não sei bem do que sou capaz, e há gente para tudo.
No entanto, posso garantir-vos que este receio em relação ao desamparo oral que é característico aos seres humanos já foi muito pior. É verdade que passei metade da minha infância descansado, pois por alguma razão álcool, quem sabe , pensava que depois dos dentes de leite ainda tinha mais um conjunto de reserva. Uma espécie de dentes de café com leite, digamos, para os já mais crescidos. Descafeinado, claro, e de leite magro para não espicaçar o colesterol. Mas quando me contaram toda a verdade, fiquei preocupadíssimo. Todos aqueles serões a comer doces teriam que passar a ser apenas meios-serões a comer meios-doces, porque afinal só ia ter dois conjuntos de dentes em vez de três.
Foi a partir dessa altura que eu, havendo até então ignorado por completo o bem-estar dos meus aparelhos de trincamento, passei a tratá-los da mesma forma que uma senhora de meia-idade abastada trata os seus caniches: Escovando-os todos os dias e dando-lhes banho com produtos especiais. A ração, essa, também é de requinte, porque já não deixo os meus dentes mastigarem coisas rascas.
No fundo, hoje em dia posso orgulhar-me de ter uma boca com pedigree e muito poucas, se não nenhumas, carraças.

Abreijo.