sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Os meus sentimentos.

Eu não gosto quando alguém morre. E nem é pela própria morte em si, porque às vezes nem gostava particularmente da pessoa e, para além disso, sei que todos nós, mais dia menos dia, também vamos partilhar o mesmo destino. A menos que alguém muito inteligente tenha um filho que acabará por inventar a cura para a morte, que pode vir em pequenas drageias tomadas de forma oral ou anal, dependendo do gosto de cada um. Mas como inteligência como a minha há poucas e não estou a pensar em ter filhos tão cedo - muito por causa da minha inteligência, lá está -, não contem com isso tão cedo.
O problema é que, enquanto morremos e não morremos, há sempre alguém que se adianta e morre mais cedo do que nós. E é aí que acontece, caso essa pessoa que morreu seja relativamente próxima de nós: as pessoas à nossa volta começam a sentir muito. "Sinto muito" para aqui, "sinto muito" para ali, as pessoas começam a fazer-nos sentir mal porque pensamos que não estamos a sentir o suficiente, como deveríamos. Pelo menos é o que acontece comigo.
Quando alguém me diz que sente muito, eu faço sempre questão de perguntar o quê. E fica sempre um silêncio constrangedor no velório, até porque se trata, lá está, de um velório. Mas tem de ser feito. É que se o sentimento for náuseas, comichão no couro cabeludo ou paralisia total dos membros inferiores, pois então que sinta, que naquela altura estarei pouco interessado nesse tipo de sentimentos, com certeza. Já se for pesar, tristeza ou até algum desalento, pois isso também eu sinto, e não estou num estado de espírito propriamente receptivo aos vossos próprios inúmeros sentimentos. Já me basta os meus.
É que se o vosso objectivo é competir com a pessoa próxima do morto, então isso é só parvo e não faz sentido nem de um ponto de vista qualitativo nem quantitativo. Qualitativamente, o facto de se acharem no direito de sentir mais sentimentos que o próprio familiar é só estranho, e até mórbido e imoral. Já quantitativamente, o facto de estarem a sentir centenas de sentimentos ao mesmo tempo não implica que sintam mais do que a pessoa em sofrimento em relação àquele assunto em particular.
Porque a questão é a seguinte, meus amigos... E se não tivesse morrido ninguém, vocês sentiam pouco? Tornavam-se seres apáticos, desprovidos de sentimentos? Se não morresse ninguém durante vinte anos, ficavam sem sentir esse tempo todo? Parece que as pessoas querem guardar todos os seus sentimentos até morrer alguém, para depois poderem dizer: "Sinto muito."
E depois há aquelas pessoas que, não se contentando em informar-nos acerca do que estão a sentir, nos querem dar os seus próprios sentimentos, sem sequer perguntar se os queremos. "Os meus sentimentos", dizem elas. Mas que tipo de sentimentos? Se eu tiver fome, alguém vai querer ficar com esse sentimento? A menos que esse alguém seja anoréctico, aí se calhar até apreciaria...
No fundo, a questão é a seguinte: o que vos leva a crer que, na eventualidade de uma morte, alguém quer os vossos sentimentos para alguma coisa? O receptor, se tiver os testículos no sítio, pode sempre dizer: "Olhe, fico-lhe muito grato pelos sentimentos que me quer transmitir, mas já tenho dores nos ossos da mudança de clima e não queria ficar também com a dor de cabeça que você me está a tentar passar à força toda, meu bandalho!" 
Lá está, desde que sejamos cordiais, as pessoas decerto irão compreender. Caso não compreendam, então olhem, sinto muito.

Abreijo.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Um país de irrequietos costumes.

Há quem diga que a corrupção impera em Portugal, o que eu condeno. Portugal não é um país de corruptos, é um país de hiperactivos com défice de atenção.
Sim, é verdade. Mudam-se os tempos, muda-se o palavreado. Antigamente, se eu me portasse mal e o meu irmão me desse um pontapé nas canelas estava apenas a educar-me; hoje, sofro de bullying. Antigamente, se eu me recusava a comer alguma coisa os meus pais enfiavam-me pela boca adentro; hoje, tenho um distúrbio alimentar. Antigamente, se eu não parava quieto e não prestava atenção na escola era mal-comportado; hoje, sou hiperactivo e tenho défice de atenção.
É isto que me parece que se passa com o nosso pequeno jardim à beira-mar plantado. O problema não está no jardim, nem pensar, mas sim no adubo que foi usado para o fazer crescer. Portugal cresceu irrequieto, com vontade de explorar e de extravasar os limites da sua existência. Depois dos alvoroços da adolescência, acabou por se tornar num jovem rígido e saudosista, preso à boa vida que tinha no passado. Hoje, é um senhor de meia-idade que começa a sentir todas as dores e mazelas das doenças que ignorou até então.
Mas a hiperactividade e a falta de atenção continuam lá! Os portugueses de hoje em dia nem são más rés, coitados, quanto muito são é esforçados demais. Desdobram-se em cargos importantes, em lugares nas salas de reunião das empresas, em direcções de bancos, atrás de púlpitos… Não conseguem fazer só uma coisa de cada vez, e por isso querem fazer tudo ao mesmo tempo. A sua hiperactividade permite-lhes saltar de cargo em cargo com a agilidade de um pequeno cão de caça, enquanto a sua falta de atenção impede-os de se manterem muito tempo a realizar sempre a mesma tarefa. Por isso, transitam de pasta em pasta como um saltimbanco engravatado que, apesar de nunca se fixar em sítio algum, ainda assim tem uma casa de férias no Algarve.
No meu tempo, a má-criação resolvia-se com uma palmada bem dada. Hoje, a hiperactividade implica consultas com psicólogos e especialistas e costuma terminar com algum tipo de medicação. Ora, eu não sei que tipo de comprimido se pode receitar a um país inteiro, nem qual o especialista que vai ter paciência para avaliar dez milhões de pessoas…
Mas, à falta de melhor solução, podemos sempre resolver o problema da mesma forma que ele era resolvido antigamente: uma palmada bem dada para levantar o rabo do chão, seguida de um bocadinho de choro e de birra e terminando com um pedido de desculpas resignado e com a promessa de que não nos voltaremos a portar mal.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Tudo a 100%.

Sou preguiçoso, mas odeio a preguiça. O que acaba por me dar demasiado trabalho, o ódio, porque, como já disse, sou preguiçoso. Vêem? É com este tipo de dilemas que lido todos os dias...
Mas eu sou daquele tipo de pessoa que leva os seus actos até ao fim, neste caso a preguiça. Por isso, odeio quem acha que pode vir para esta vida de preguiçoso só porque sim. Falo, pois está claro, dos produtos que prometem remover 99,9% daquilo que é pretendido remover.
Não me levem a mal, eu também quero ter uma cozinha mais limpa, uma sanita bastante bem desinfectada, um pé o menor atleta possível e um cabelo três vezes mais sedoso e com muito pouca probabilidade de se partir, seja o que for que isso significa. Mas desconfio de produtos que, a dedicarem-se a essa causa, não se dedicam até ao fim, quando estão tão perto de atingir a perfeição!
Veja-se o meu caso: Eu nunca seria capaz de comer apenas 99,9% de um saco de batatas, nem de beber apenas 99,9% de um sumo. Sim, são alimentos pouco saudáveis, mas vocês não têm nada a ver com isso! A única forma de deixar 0,01% de alguma coisa por fazer é se esse valor disser respeito à lavagem de roupa interior... Aí, convém deixar sempre uma pequena percentagem de fora, para não andar com o badalo a lamber o chão de arrasto enquanto a roupa lava e não lava numa máquina com apenas 0,01% de calcário.
Porque, é o seguinte: Se estes produtos removessem apenas 50,9% daquilo que foram feitos para fazer desaparecer - como nódoas, bactérias e fungos -, eu até percebia e aplaudia mesmo o esforço de terem conseguido remover mais de metade. Agora, 99,9%? Porquê morrer assim na praia, desistir a um passo da meta? Porque não esforçar-se mais um bocadinho, apenas 0,01%, e remover tudo de uma assentada?
E se eu comprar outro produto igual, para compensar a quantidade em falta na primeira embalagem, passo a remover 199,8% de alguma coisa? Será isso possível, sequer?
A todos os inventores destes produtos, um apelo: Porque não passam mais uma ou outra horinha no laboratório e acabam de inventar o 0,01% que falta? Custa-vos assim tanto? A vossa família vai gostar menos de vocês por terem ficado uma hora extra no trabalho? Até pelo contrário, são capazes mesmo de vos apreciar mais, pois assim têm a hipótese de ter um lar 100% limpo e a vossa mulher tem mais tempo para mandar o amante embora, que nem tem tido tempo para fazer conchinha com ela no fim do sexo.
O que achariam de um avião que apenas fizesse 99,9% da viagem? Ou de um trolha que apenas construísse 99,9% dos alicerces de uma casa? E o que dizer de um cozinheiro japonês que apenas tirasse 99,9% do veneno do peixe? Percebem onde eu quero chegar? Então parem de ser preguiçosos!
"Não deixes para amanhã o 0,01% de algo que podes fazer desaparecer hoje", já dizia a minha avó.
Era muito boa a matemática, o raio da velha... E a conselhos de vida também.

Abreijo.